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A Pedra e a Água numa Paisagem Renascentista Idilizada

Encontra-se na Proposta de Inclusão de Vila Viçosa no Património Mundial um texto que quase nos embala num sonho feliz, de tal modo idealiza a vila renascentista e projecta essa idealização no presente e no futuro. Por isso, não é de mais transcrevê-lo quase na íntegra:
“As praças, os largos, os jardins públicos e privados e as ruas arborizadas ligam a urbe ao campo e abrem perspetivas estéticas múltiplas e variadas. A estrutura ecológica municipal encontra-se bastante bem articulada e revela um bom índice de permeabilidade do solo, garantido pela existência de espaços onde prevalece o solo vivo. A maioria destes espaços verdes está implantada sobre as linhas de água, testemunhando assim, uma clara consciência de princípios de planeamento urbano articulado com os sistemas naturais. [...]
O desenho do espaço urbano traduz o valor estruturante da água na Vila. Ao longo destes espaços abertos localizam-se diversos elementos de água – fontes, tanques, valas e chafarizes – que definem um património cultural que estabelece uma estreita ligação com os espaços rurais, nomeadamente as quintas envolventes;
As hortas, os montes, as propriedades agrícolas, as noras, os aquedutos e os moinhos, situados na envolvente próxima, constituem um sistema de construções que sublinham a íntima relação social e económica de Vila Viçosa com o território rural circundante, a qual se tem mantido ao: longo da história. " (p. 27)
E prosseguindo neste registo idealizante, ou laudatório:
“Nesta organização espacial emerge a presença notória da amenidade das espacialidades, vinculada ao ambiente de deleite e aos espaços, que combinam recreio com produção,  caracterizadas pela sua utilidade, qualidade e simplicidade da sua linguagem compositiva, que se estendem por toda a área geográfica do concelho e que ainda hoje são perfeitamente visíveis.
Nestes espaços a água tem um papel de relevo, condicionando a sua tipologia e a própria localização. Este ideário mostra uma impressionante arquitetura da 'pedra e da água', traduzindo em poucas palavras, ou na sua plena significação, a relação dos recursos pétreos e o sistema hidráulico, tão presentes no espaço calipolense. Na verdade, as descrições de autores coevos,
referem-se às qualidades estéticas dos jardins e mencionam uns 'jogos de água' e esculturas com várias bicas que lançavam copiosos jatos de água, configurando uma autêntica 'escultura de jardim'. A comprová-lo, António Cadornega (1640-1680) volta a mencionar a existência de esculturas de pedra, de lagos, de noras, de casas de fresco, de tanques de locais de prazer e de
engenhos sempre associados à frescura e à presença da água, configurando o movimento e a sonoridade dos 'jogos de água' "(p. 28)

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Vila Viçosa, Carrascal (um rossio), esquadrão do Regimento de  Olivença acolhido em Vila Viçosa durante grande parte do século XIX.

Tudo isto é dito na Proposta de Inclusão não obstante já se ter constatado noutra das suas secções, que aqueles cursos de água foram “encanados” e que grande parte destas superfícies, outrora solos, foi artificializada ou edificada. O que mostra haver aqui um problema na descrição (assim como na realidade do terreno) e que, no mínimo, há uma questão a indagar sobre a cronologia a natureza e o enquadramento dessas intervenções. Tem havido estudos sobre isso que não foram devidamente tidos em conta neste processo de candidatura, embora sejam referidos na Bibliografia (“A Arquitectura da Água...”) e de algum modo estejam citados (lírica mas inconsequentemente) nos parágrafos acima transcritos. Fala-se em espaços verdes, ribeiros e hortas, mas não se inclui no núcleo histórico urbano, nem a Mata Municipal, nem as hortas e quintas que vão da Horta da Esperança, pelo Chão da Ordem, até aos Capuchos, nem a Ribeira do Beiçudo envolvida num casario inqualificável (?). Ora, sem o Carrascal, fica interrompida uma cintura que vem dos jardins do Palácio e do Convento das Chagas, e passando pelo Olival do Reguengo (todos no núcleo histórico urbano), devia continuar-se pelo Rossio de Cima (renaturalizado, e não jardinado e com mais edificações) até à Horta do Convento da Esperança e ao Chão da Ordem.Quanto “às praças, os largos, os jardins públicos e privados e as ruas arborizadas” que “ ligam a urbe ao campo e abrem perspetivas estéticas múltiplas e variadas”. Fica a dúvida se isto é uma referência às avenidas abertas por Duarte Pacheco, e às arborizações que fez em torno ao Castelo, ou à Mata Municipal que fez plantar no Rossio, funcionando esta, e bem, como uma confirmação da  descontinuidade em relação ao bairro operário, então começado a construir, e agora como um contrapeso ao extenso Parque industrial construído desde o final do séc. XX. Também ao ler isto nos perguntamos até que ponto foi compreendido o papel das defesas que circundavam a Cerca Nova na relação da urbe com o espaço envolvente, sobretudo a Poente e a Sul. Sendo que a Nascente e Norte os cursos de água logo se afundam em vales encaixados e se vão unindo progressivamente em ribeiros e ribeiras com por vezes tumultuosos caudais.

Numa síntese mais técnica e já não tão lírica, a que voltaremos na secção B.1:"Na génese matricial desta estética existe uma rede de hortos do paço ducal, pomares, tapadas, hortas, cercas conventuais, pátios de casas do aglomerado urbano e quintas de recreio, semesquecer a Tapada Real, os quais se encontram associados ao sistema hidráulico relacionado com o abastecimento coletivo de água, potenciado certamente pela situação do município no Anticlinal de Estremoz."

Qual a matriz “renascentista” que se atribui a Vila Viçosa?

Ao fazer-se numa secção 3 desta Proposta de Inclusão a “justificação da inscrição - valor universal excecional”, estas considerações da Profª Carapinha são implicitamente contraditadas ou ignoradas no essencial:
“Vila Viçosa representa uma obra-prima do génio da criatividade humana pois a parte da cidade desenhada e construída no século XVI, ampliando o antigo burgo medieval, é um dos primeiros exemplos de concretização dos ideais urbanísticos renascentistas, nomeadamente porque:
A cidade, com as suas ruas convergindo para o recinto do Palácio Ducal, reflete princípios de conformação urbana defendidos no século anterior por uma das figuras mais proeminentes do renascimento italiano, com projeção mundial: Leon Battista Alberti (1404-1472) ; […] “
É verdade que para Alberti o jardim não devia ser faustoso (noções que estão ao alcance de qualquer um com um clic em https://www.florencewithguide.com/it/blog-it/i-giardini-delquattrocento-parte-ii/), mas como só Aurora Carapinha se refere a isso indirectamente e, pouco depois do acima transcrito, se diz que o palácio de D. Jaime:por razões sumptuárias sofre, em 1537, uma profunda transformação segundo parâmetros renascentistas, dando concretização à imagem ideal da casa romana, divulgada nos círculos
arquitetónicos do fim do século XV, em particular nas ilustrações da edição de Vitrúvio por Fra Giocondo (Veneza, 1511”); 
e, pois que se acrescenta:
"Em 1583, com o Duque D. Teodósio II, o arquiteto Nicolau de Frias remodela globalmente a residência e a composição do alçado, configurando um discurso arquitectónico maneirista severo e ritmado".
Fica-se sem perceber qual a matriz “renascentista” que se atribui a Vila Viçosa.

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Só depois, numa avaliação complexiva, se vai um pouco ao encontro da descrição da paisagem de Vila Viçosa feita pela Profª Carapinha:
"O desenho da paisagem de Vila Viçosa é singular pela unidade das diferentes escalas de intervenção.
O sistema agrícola, os jardins, a Tapada e toda a ideia de natureza e da sua fruição, quer emotiva, quer estética, estão bem presentes neste ideário e nesta construção do espaço. Reconhece-se uma intencionalidade de ordenação do espaço exterior num contexto renascentista de cidade, na sua
relação direta com o campo, dando aos dois elementos uma notória continuidade.
Enfim, Vila Viçosa não é só importante pelos jardins, urbanismo, arquitetura, música e outros aspectos patrimoniais e culturais, é também importante porque podemos estar perante o primeiro exemplo de um ordenamento da paisagem, um espaço que se organiza para viver a cidade e para se viver da cidade.
Mas, parece que não se compreendeu que a singularidade e excepcionalidade do bem passa por nunca ter sido “cidade”. E para relativizar a afirmação de que em V V podemos estar perante o primeiro exemplo de um ordenamento da paisagem, mais uma vez tem que se recomendar uns endereços:
https://it.wikipedia.org/wiki/Allegoria_ed_effetti_del_Buono_e_del_Cattivo_Governo
http://www.hotelsienaborgogrondaie.com/allegory-and-effects-of-the-good-and-the-badgovernment/
Ou este, relativo à teorização da paisagem na Toscânia no séc. XIV, mas onde se pode ver, como ainda hoje, os italianos conjugam arte com agricultura (viticultura), e com comércio:
http://www.beatesca.com/vino_arte_siena_italiano.php

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Só sublinhando o contexto geográfico e cultural do Alentejo (na sua relação com Espanha e a totalidade de Portugal), no qual Vila Viçosa se insere ao mesmo tempo que com ele contrasta, se pode compreender a singularidade desta vila e desenvolver uma estratégia para defender uma excepcionalidade do seu valor. Mas nesse processo e nessa estratégia tem também que se esclarecer as continuidades e singularidades em relação à “pequena” região rica em património arquitectónico, cultural e agro-silvo-pastoril demarcada por Elvas, Estremoz e Alandroal, e talvez mesmo Évora. Não esquecendo a ligação que também historicamente passa pela fortaleza que D. Jaime fez construir em Évora Monte, nem aquelas fortalezas e vasto campo de uma batalha de que Elvas fez Património Mundial, nem quanto a Tapada Real se estende por concelhos vizinhos, nem os terroir que aqui se vão desenvolvendo. Para valorizar Vila Viçosa como Património Mundial, não basta pensar a integração da vila numa paisagem, é também indispensável pensar a sua integração numa região.

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Não há jardins soberbos a acompanhar a arquitetura palaciega...

Há um texto sobre a paisagem na secção 2.3.1 deste dossier, da autoria da Prof.ª Aurora Carapinha (o único em que o autor está identificado), que aponta para outra estratégia de valorização deste património e outra retórica na apresentação da candidatura, mas que não foi compreendido, ou não
conseguiram dar-lhe desenvolvimento, talvez por não quererem assumir as suas implicações no presente. Porque a tese é subtil e não é fácil resumi-la sem a troncar abusivamente, faz-se uma
longa transcrição em que se introduzem sublinhados para destacar o mais importante para as ideias a que voltaremos mais à frente.
"Não há jardins soberbos a acompanhar a arquitetura palaciega mas há uma rede de hortos, pomares, hortas, cercas conventuais, quintas de recreio, matas aos quais se associam sistemas hidráulicos engenhosos (captação, armazenamento, distribuição da água, moinhos, pisões, vinculados a um saber antigo [das gentes alentejanas], determinados pela natureza geológica do  lugar. E se as tipologias de espaço aberto com maior dimensão estão associadas ao palácio ducal e a
estruturas religiosas, outros há, mais pequenas, que irrompem na malha regular que desenha a vila e na geometria que desenha o espaço rural determinada pelo relevo, vegetação e pela natureza dos solos. Estes hortos, hortas, tapadas, cercas conventuais localizadas e construídas a partir dos factores de produção (água, solo, microclima) respondem à necessidade de produção e desenham a paisagem desta região em contraponto com a restante paisagem do Alentejo. Esta diferenciação
resulta da presença do anticlinal de Estremoz que vai originar uma estrutura fundiária de menor dimensões devido à presença da água e consequentemente de solos mais ricos." (p.55 )
Este texto também se refere, aqui mais explicitamente, a descrições do período tardorenascentista :

"[Uma] frase de Cadornega ajuda-nos a compreender, ou melhor, a expressar aquilo que defendemos. A presença das palavras amenidade fertilidade e deleitoso remetem-nos de imediato para um conceito em tudo distinto do conceito da vila ducal renascentista. A vila ducal renascentista, enquanto representação do poder senhorial, afirma-se através de uma geometria e de uma adjetivação da linguagem paisagística, urbanística e arquitectónica. […]
Como acima referimos, a maioria das vilas ducais expressam o seu poder através de uma linguagem paisagística, onde o desenho de jardins, a partir de códigos teóricos e abstractos, tem grande significado. Aqui, em Vila Viçosa, essa afirmação de poder é feita, no que se refere à dimensão paisagística, a partir das espacialidades vinculadas à produção. Respondendo a um dos desideratos do espaço de recreio no contexto mediterrâneo que se pode resumir numa frase: o que é útil não deixa de ser belo e o que é belo não deixa de ser útil. Lema que se vincula ao ideário clássico do mediterrâneo, mas que prevaleceu de forma muito objectiva e concreta no desenho do jardim em Portugal e que em Vila Viçosa ainda é perfeitamente legível. O que no contexto internacional faz de Vila Viçosa um espaço único. (p. 56). [...]
Esta trama de paisagem deleitosa expande-se desde o interior da vila até a todo o termo de Vila Viçosa. […] à imponência do terreiro do Paço e de todo o seu enquadramento urbanístico
sucede-se uma espacialidade da simplicidade onde a qualidade do espaço (hortos, tapadas, cercas conventuais, pomares) resulta mais da qualidade intrínseca de cada um dos componentes que constroem o espaço do que de um desenho abstracto, teórico, tratadístico. É a água, ou melhor a
necessidade de rega, que determina toda a composição e a própria localização destes espaços. É o sistema hidráulico que desenha a composição. É sobre ele, e com ele, que se constroem as arquiteturas de prazer – casas de fresco, tanques. Estas, por vezes, apresentam uma linguagem decorativa erudita que mais uma vez contrasta como a simplicidade da composição global do espaço. A vegetação como referimos anteriormente é predominantemente de espécies com
interesse utilitário (hortícolas, frutícolas) onde pontuam espécies ornamentais. Ambas contribuem para uma espacialidade rica em sombras, aromas, cores. Se no complexo palaciego estes espaços se apresentam com composições mais elaboradas nos espaços que pontuam o interior dos quarteirões
apenas assistimos, porque o espaço é menor a uma condensação desta ambiência.” (p. 56); (os, sublinhados, aqui como em todos estes textos, são da responsabilidade do autor desta Participação na Discussão)
Sublinhe-se que, mais do que a relativa abundância de água, é “a necessidade de rega” que determina as arquitecturas de jardim e hortas, com uma “simplificação” e “condensação” nos
espaços mais pequenos, que dá à Vila a sua singularidade, no encontro dos saberes tradicionais alentejanos e portugueses com os padrões que vinham de Itália e França. Mas isto é difícil de entender para quem não é alentejano e ainda mais difícil de verter sistematicamente para uma retórica de candidatura a património mundial.

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Da análise da Prof.ª Carapinha só ficou um eco: 
"A fusão entre os valores eruditos decorrentes do projeto urbanístico singular do século XVI com os valores tradicionais, que resultam do saber fazer popular e do emprego das formas e dos materiais mais disponíveis na região, nomeadamente o mármore." (p. 144)
Uma posição singular a nível internacional” seria alcançada graças à ”matriz do espaço urbano e à dimensão do desenho da valência paisagística”, a “unidade das diferentes escalas de intervenção”.
Ora, se quanto à matriz do espaço urbano se insiste justamente, pelo menos em relação ao passado, com:
"as hortas, os montes, as propriedades agrícolas, as noras, os aquedutos e os moinhos, situados na envolvente próxima, constituem um sistema de construções que sublinham a íntima relação social e económica de Vila Viçosa com o território rural circundante, a qual se tem mantido ao longo da história".
Já em relação à “dimensão do desenho paisagístico”, fica sempre a dúvida se é uma referência ao passado, ou a uma sua continuação até aos dias de hoje, e se a dimensão é interior à urbe ou se tem numa envolvente mais ou menos larga a sua aplicação. E é aí que esperaríamos que esta candidatura se confrontasse com o segundo grande problema a que fizemos referência no início: a exploração do mármore e mesmo a localização e funcionamento das indústrias de serração e corte e da laboração mais fina da pedra que brilha.
Mas a referência a uma envolvente bem larga não deixa dúvidas quando se escreve:
"Na génese matricial desta estética existe uma rede de hortos do paço ducal, pomares, tapadas, hortas, cercas conventuais, pátios de casas do aglomerado urbano e quintas de recreio, sem
esquecer a Tapada Real, os quais se encontram associados ao sistema hidráulico relacionado com o abastecimento coletivo de água, potenciado certamente pela situação do município no Anticlinal de Estremoz. […] Nesta organização espacial emerge a presença notória da amenidade das espacialidades, vinculada ao ambiente de deleite e aos espaços, que combinam recreio com
produção, caracterizadas pela sua utilidade, qualidade e simplicidade da sua linguagem compositiva, que se estendem por toda a área geográfica do concelho e que ainda hoje são
perfeitamente visíveis."

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