DESFAZER UM ENGANO
A Câmara Municipal de Vila Viçosa pôs em discussão pública a "Candidatura de Vila Viçosa--Viila Ducal Renascentista a Património Mundial UNESCO". Essa discussão não devia limitar-se a comunicações unilaterais com a CM. Mas como o desafio que fiz para uma discussão verdadeiramente pública quase não teve resposta, escrevi um texto que enviei à CM de que publico aqui alguns excertos.
I – Dois Problemas Principais
A. A intervenção urbanística e a “campanha de restauro” das fortificações levadas a cabo pelo
regime de Salazar com a motivação da Comemoração dos Centenários da Independência
(1139/1143) e da Restauração (1640) culminou na (re)construção de uma Porta de Évora em estilo
medieval mesmo em frente à fortaleza quinhentista de D Jaime e destruição de boa parte das
fortificações de reforço, feitas em meados de seiscentos como preparação para a Guerra da
Restauração (vieram a permitir a resistência a um cerco pelo exército de Filipe IV, numa batalha
que culminou com a vitória dos portugueses, passados 10 dias nos vizinhos Montes Claros). Isto dá lugar a várias leituras enviesadas da vila e do seu património e promove uma vivência pela
população baseada numa falsidade e numa manipulação, contribuindo para afastar os calipolenses, e todos os portugueses, da memória dessa batalha decisiva e do papel que aí desempenhou Vila Viçosa e a sua fortaleza; destruindo a Estacada e encobrindo a Fortaleza também com um cineteatro e com um denso arvoredo que contribui em muito para a degradação das restantes fortificações.

B. A indústria extractiva do mármore, que foi o mais importante factor de desenvolvimentoeconómico e social nesta região durante as ultimas décadas, que disponibiliza um recurso, e poronde passam práticas culturais valorizadas na Candidatura, cria porém cicatrizes na paisagemrural, dificulta as acessibilidades e é factor de poluição do Aquífero e de degeneração dapaisagem; vastas áreas de escavação e escombreiras, visíveis em muitas das fotos que integram estaproposta de inclusão no Património Mundial, prejudicam qualquer pretensão de articulaçãoharmoniosa entre actividades humanas e desfrute cénico ou deambulante da paisagem, contrariandoo carácter deleitoso que, segundo textos desta proposta, a caracterizava

A. 1. 4
O grande problema (na Candidatura de Vila Viçosa a Património Mundial, como Vila Ducal Renascentista) é que a fortaleza quinhentista, a Fortaleza Nova, que o Duque D. Jaime decidiu construir no lugar da alcáçova medeieval, foi secundarizada pela (re)construção de um torreão de uma porta medieval destruída havia séculos e que agora evoca o velho "castelo altaneiro", cercada por uma plantação de arvoredo que a foi escondendo progressivamente e que progressiva e irreversivelmente degrada parte das fortificações com que a fortaleza quinhentista foi reforçada a seguir a 1640 para se defender de um previsível ataque pelas exércitos de Filipe I (aquela parte que a intervenção do Estado Novo dirigida por Duarte Pacheco não tinha destruído), e com isto se reforçava o esquecimento do cerco que veio de facto a ser imposto à Vila por um exército comandado pelo Marquês de Caracena em Junho de 1665. (Em boa verdade, a desvalorização da resistência ao cerco vem das celebrações que deste se fizeram nos anos que mediatamente se lhe seguiram … Já me referi a isso no boletim da efémera Oficina da Memória
http://kalikhora.wixsite.com/khora/. Volto a remeter para o Pde Joaquim Espanca e deixo as considerações para outra ocasião.)
Na secção sobre a História (p. 38), com uma referência a Vauban (que não terá sido verificada cronologicamente), escreveu-se na Proposta de Inclusão como Património UNESCO:
"--No século XVII, na guerra que conduziu à definitiva independência de Portugal, a fortaleza foi objecto de uma grande reforma, repartida por duas fases, ambas resultantes dos projetos do arquiteto francês Vauban: a primeira iniciou-se em 1643 e foi comandada por Pascásio Cosmander; a segunda é o produto da ação do conde de Schomberg, na década de 1660. Esta última etapa contou com a construção de revelins e fortins que envolvem a estrutura medieval e também parte da cidade baixa". (p. 73)
E, ignorando o cerco, quanto mais a resistência ao cerco:
"No período pós restauração, quando se procurava a legitimidade dinástica da Casa de Bragança e se vivia um novo ciclo de instabilidade frente à vizinha Espanha, Vila Viçosa foi mais uma vez chamada à empresa da mobilização e adesão para esta causa e ao exercício defensivo, que cumpriu inteiramente." – Que linguagem de historiador?! ... Cumpriu como?

Quando, ao querer fazer reconhecer como valor mundial um património constituído essencialmente por um palácio ducal/real na sua articulação com um conjunto de edifícios religiosos e residências nobres disseminadas numa pequena urbe e no espaço rural em que se insere, se é confrontado com
dois grandes problemas mesmo no núcleo dessa articulação, há três vias que se podem tomar no desenvolvimento da apresentação desse património e na fundamentação dessa candidatura de modo a corresponder aos critérios de qualificação.
1. Ignorar o problema, o que pode ir ao ponto de negar a sua existência, ou disfarçá-lo, subestimando a sua importância na apresentação dos factos; isto tem como consequência uma lógica no desenvolvimento da candidatura que leva ao falseamento não só da correspondência a critérios de qualificação e selecção, sobretudo os de autenticidade e integridade, como compromete o envolvimento das populações (reforça a falsidade da relação com esse património e da convivência com ele) e desvia as entidades públicas de uma prioridade na reparação do problema, tornando duvidoso o seu compromisso na
salvaguarda e valorização do bem a classificar; facilmente detectável, este disfarce compromete definitivamente qualquer candidatura e faz duvidar das intenções que a suscitaram.
2. Subestimar o problema, ou as suas implicações, onde e quando ele surja de forma incontornável; esta via pode ser complementar da 1ª, seguindo a mesma lógica de falsidade, ou pode constituir-se como um erro ou insuficiência de leitura do bem patrimonial, do(s) seus significados (passados e actuais), do modo como é percepcionado e vivido, assim como das suas potencialidades; para além das dúvidas que suscita relativamente às prioridades de reparação, conservação, salvaguarda e valorização, é uma via que, acabando inevitavelmente por ser reconhecida, enfraquece irremediavelmente a candidatura.
3. Reconhecer plenamente o(s) problema(s), compreender as suas causas e significados, analisar as suas implicações quer para o processo de candidatura quer para o património em si, identificar as prioridades de reparação, na medida do possível, de conservação e salvaguarda, na medida do necessário, e de revalorização e promoção, na medida do desejado; é a via do envolvimento das populações numa vivência do património que mais o valoriza; é a via em que a candidatura, só como processo, já começa a ter efeitos virtuosos, oque reforça a perspectiva de que a classificação seja indutora de efeitos positivos.
Vai-se analisar aqui como e em que medida cada uma destas vias se encontra neste processo de candidatura e na Proposta de Inclusão agora posta à discussão pública. Mas desde já se identifica de forma sintética e se concretiza, talvez com excessiva simplificação, quais são os dois grandes problemas com que esta candidatura está confrontada e de onde resultam também duas graves
ameaças ao património, que comprometem a vivência e a promoção que os habitantes dele possam fazer, e as possibilidades de desenvolvimento desta Vila, qualquer que seja o sucesso desta candidatura, a menos que se enveredasse pela 3ª das vias apontadas.
A.1
A Fortaleza Nova e a Resistência ao Cerco na Guerra de Restauração
Quando a apresentação da candidatura de Vila Viçosa a Património UNESCO, ao fazer a descrição do bem patrimonial a candidatar, se depara com o facto problemático que são as “importantes alterações na morfologia urbana […] na década de 40”, as implicações deste facto são imediatamente subestimadas escrevendo-se, sem respeito ou conhecimento de factos e documentos, que se tratou da “demolição de algumas casas” e de “intervenções de restauro no castelo da vila”. Enquanto que a intenção e significado da intervenção urbanística começa por ser reduzida a uma “ampliação da Praça da República” e à “abertura de uma Avenida”. Para ampliar a Praça da República – o que nada tornava necessário -- não havia que chegar ao ponto de destruir baluartes da Guerra da Restauração, nem construir no seu topo uma Porta de Évora em estilo medieval, que não fazia sentido continuar ali desde o início da construção da fortaleza no séc. XVI; fortaleza quinhentista com a qual a nova porta medieval não tem qualquer articulação possível, nem física, nem funcional, nem simbólica, antes contribuindo para a encobrir e desvalorizar. Por isso, juntaram à sua construção uma escada manhosa que arranca do parapeito do fosso da fortaleza, a confirmar ter por única função o acesso ao mirador. E por isso, acaba por se admitir na candidatura outra explicação para a abertura da Avenida que seria “dar visibilidade aos monumentos [...] possibilitando a vista para o Castelo”. O que suscita duas questões:
Que “monumentos”, e o que se entende por “Castelo”?
Que “Castelo” se queria tornar mais visível ”?
Já na secção em que se analisa a correspondência aos critérios da classificação pela UNESCO, a “abertura da Avenida” é justificada assim:
"A Avenida Duques de Bragança resultou, na mesma época, de um desafogo da envolvente próxima do castelo, quer para potenciar a sua apreciação estética, quer para permitir maior desafogo rodoviário [...] na estrada que liga Estremoz a Alandroal." (p. 124)
Quem escreve isto, ou está a confundir o “Castelo” com a Cerca Velha ou está a confundir os torreões da Porta de Évora com o “Castelo” (Castelo artilheiro, ou seja, Fortaleza quinhentista), e
fala como se não tivesse a menor ideia do que foi essa “envolvente próxima do castelo”, nem da existência aí das marcas de uma antiga praça onde se localizava até ao séc. XVII a sede da administração municipal, ou da existência, mais à frente, dos restos da Estacada e algumas pontas do diamante das fortificações do séc. XVII. A ignorância daqueles a quem se encomenda textos
também poderia ser uma forma de negar os factos e iludir as suas implicações possíveis.


