Entre o Duque de Bragança D. Jaime e D. João IV Rei de Portugal

Continua a publicação de excertos da participação na Discussão Pública da Candidatura de Vila Viçosa a Património Mundial:
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Para Resgatar a Vila da Intervenção do Estado Novo, um Centro Interpretativo na salazarenha Avenida dos Duques de Bragança, em frente ao Pelourinho
Ao justificar o “valor universal excecional” do bem proposto para Património Mundial, as “alterações realizadas em meados do século XX” são apresentadas como “uma das cinco principais fases de crescimento da vila” que podem ser reconhecidas e “compreendidas ao percorrê-la”, mas a valoração que se faz dessas alterações “que criara uma nova realidade urbana” oscila entre terem “forçado novas perspetivas estéticas e de valor simbólico entre o novo centro cívico e o castelo, génese da urbe” (p.139) e ter essa “nova realidade” aberto novas perspectivas espaciais, estéticas e simbólicas, embora se diga terem sido “alterações e expansões funcionais” – como se as novas perspectivas tivessem sido um efeito estético e simbólico secundário e inesperado.
Há claramente uma resistência a assumir as implicações daquela intervenção do Estado Novo e em reconhecer-lhe ou questionar-lhe as intenções. Mas aqui já fica no ar que pode haver uma problemática relativa ao simbólico e aos significados, e que pode haver várias leituras, precisamente partindo da(s) leitura(s) do simbólico.
"As alterações e expansões funcionais realizadas em meados do século XX, apesar de terem alterado a Praça da República para a transformar em alameda, não destruíram os principais elementos da implantação quinhentista. Abriram, porém, novas perspetivas espaciais, estéticas e simbólicas entre este novo centro cívico da vila e o Castelo."” (p. 143)
Insiste-se na avaliação global que se faz do bem proposto voltando a omitir aquela intervenção:
"Na morfologia urbana das sucessivas fases do crescimento de Vila Viçosa são ainda perfeitamente legíveis e a posição relativa dos diversos edifícios construídos no século XVI (Paço ducal, Igrejas, Conventos, Castelo), atuais monumentos nacionais, ainda se mantêm permitindo a compreensão dos ideais renascentistas que estiveram na sua génese" (p. 143)
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Um centro interpretativo e um centro de estudos seriam indispensáveis para se poder assumir a intervenção do Regime de Salazar em todas as suas mplicações. O que, neste processo de candidatura, poderia ter dado lugar a uma interrogação e uma investigação sobre o significado da leitura que Duarte Pacheco abriu, forçou ou impôs.
Porque é que na intervenção do Regime de Salazar foi valorizada a medievalidade do castelo em claro prejuízo da celebração da Batalha de Vila Viçosa – Montes Claros e das estruturas que em Vila Viçosa testemunhavam (ainda que em degradação) um heróico episódio de resistência, enquanto que a memória da Restauração era cultivada com a construção de uma estátua equestre do rei sobre um elevado pedestal granítico rematando assim, neobarrocamente o magnífico Terreiro. À parte o estilo do pedestal, a figura de D. João IV, pairando sobre os edifícios e centrando a percepção da praça, tem um indubitável valor plástico e simbólico. Mas, a ser assim, porque não haveria de ser listada entre o património classificado? Porque não é mais valorizada na retórica da candidatura? Possivelmente porque está “contaminada” pelo pecado da intervenção salazarista que se quer ignorar ou desvalorizar nas suas implicações (mas que não se consegue contornar quando se faz a delimitação do núcleo histórico urbano a classificar, como se discutirá na secção A.3).
No processo desta candidatura de Vila Viçosa a Património Mundial, não se podia ter deixado de indagar mais profundamente porque é que o regime de Salazar interveio tão fortemente nesta Vila. A conjugação do 8º centenário da Fundação da Nacionalidade e do 3º da Restauração da Independência pela “Aclamação” de D. João como Rei eram uma oportunidade de ouro para os
ideólogos/propagandistas do regime que Salazar vinha instalando desde o início dos anos 30 desenvolverem e afirmarem a ideia de que se estava num 3º momento de (re)fundação do Estado – Um Estado Novo, capaz de lançar as fundações de um próspero futuro, mas enraizado e legitimado no passado.
Mais, chamado naquele “momento histórico” a regenerar o próprio passado (o Passado com que podia legitimar-se), tarefa regeneradora do passado,
também materialmente, que só ele estava em condições de levar a cabo. As necessidades da propaganda convergiam em Vila Viçosa com a urgência do restauro material dos testemunhos desse passado.
A sucessão das fases é relativamente bem legível) para quem esteja informado sobre o revivalmodernismo da arquitectura “português suave”), nomeadamente na relação entre a Cerca Velha (com o perfil marcante da torre albarrã) e o Terreiro do Paço, não obstante o modo cenográfico como a Avenida dos Duques de Bragança os liga alterando a sua articulação inicial, já transformada pelas residências nobres que aí foram inseridas posteriormente, mas então sem alterar tanto a matriz dos arruamentos. A Avenida de Duarte Pacheco, que corta a continuidade das ruas de St. António e dos Combatentes com a Rua das Freiras e suas paralelas, dificulta a leitura dessa sequência e impõe uma perspectiva que funde e confunde as várias fases de expansão medieval com as expansões renascentista e posteriores.Mas o que mais prejudica essa leitura da sequência é a (re)construída porta medieval com vista para essa tal grande panorâmica, e que não permite compreender o que foi a novidade da Fortaleza de D Jaime, sugerindo mesmo que esta fortificação seja anterior às muralhas medievais, presença agigantada por uns torreões que evocam na sua proeminência a Torre de Menagem destruída por D. Jaime no séc.XVI.#viladucal #vilaviçosa #vilaviçosaNãoseRende #culturadoPatrimónio
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O estudo antropológico da memória social é indispensável num processo de candidatura como este. Ele podia nomeadamente ajudar a compreender significados inscritos, e lidos, no edificado, bem como documentar e esclarecer “vivências”. Podia ajudar os especialistas a interpretar a linguagem desse pedestal da estátua equestre de D. João IV , do entrecruzamento de círculos e polígonos no desenho da sua planta; tudo isto era o que me sussurravam, desde que eu era pequenino, as pedras graníticas daquele pedestal, com que o Estado Novo tinha posto raízes no Terreiro do Paço, qual pata de elefante barroco em prado renascentista.



Nada de espantar, portanto, que o regime de Salazar tivesse ignorado um momento em que a história se contorce convulsamente na indefinição da resistência a um cerco (indefensável, segundo o Marquês de Marialva). Seria de esperar uma visão da história que só vê no passado a consumação do inevitável, confirmação dos princípios da ordem. Não um processo de desfecho imprevisível, cuja narrativa abre ao futuro, como à recuperação de outros possíveis no passado. Não terá chegado, portanto, a haver uma opção entre a preservação e restauro dos plebeus testemunhos da Guerra da Restauração (condenados à efemeridade do momento para que estavam vocacionadas) e o fazer ressurgir a nobreza de edificações medievais ideologicamente vistas como vocacionadas para resistir aos tempos. Não houve, portanto, para o salazarismo, qualquer sentimento ou consciência de sacrifício da memória do cerco, ou sequer da memória da longa Guerra de Restauração, que para além da aclamação de um rei, promovido por umas dezenas de conspiradores, se prolongou por três décadas de esforço e lutas, do Pernambuco às Molucas, das fortalezas no Minho (e da côrte inglesa) à baía de Luanda, em que se empenhou todo um povo e se destacaram os mais variados dos seus componentes.#viladucal #vilaviçosa #vilaviçosaNãoseRende #culturadoPatrimónio



Escreve-se, na secção do Dossier sobre a INTEGRIDADE, que “o projeto urbanístico e os principais monumentos de Vila Viçosa não só se encontram íntegros nas suas linhas fundamentais, como
também continuam a influenciar o caráter e a ambiência da Vila” (p. 147). Mas não se analisa qual é vivência (as vivências) que os habitantes, e os visitantes, têm daquele carácter e daquela ambiência; nem, como possam ser condicionados pela leitura, ou
perspectiva “forçada” por Duarte Pacheco. E haveria de se ter começado pela(s) leitura(s) que ele mesmo e o Regime faziam.
Quase se louva a apreciação estética do Castelo, potenciada pela Avenida dos Duques de Bragança, sem esclarecer que o que é valorizado pela avenida é a cerca medieval restaurada. Referem-se
alguns dos novos prédios que foram construídos a ladear a Avenida mas nada se diz sobre os estilos arquitectónico-decorativos que os animam e, dando-lhes significado, contribuem para as leituras do significado do todo em que se inserem. E para isso foram concebidos e ali edificados. Devia ter havido uma análise especializada de como o revivalismo, associado ao modernismo, se inseriu numa vila em que se articulavam dois momentos fundadores e refundadores da nacionalidade e como impôs a sua leitura através desta avenida, e da “arqueologia reconstrutiva” que aí teve um dos seus momentos mais despudorados.

Prejudica isto a autenticidade e a integridade do bem candidatado? A autenticidade, só na medida em que se vende por autenticamente medieval aquela Porta, e até se faz passar popularmente por renascentista o conjunto com os torreões. A integridade talvez, mas também aqui depende da leitura que se faz do bem e da vivência que dele se propõe e promove, bem como do equilíbrio e articulação com outras componentes e valorizações da candidatura, como se mostrou na secção A.1.
Quem não teria visto no Paço Ducal, com os seus magníficos conventos e igrejas-panteão a desenharem um belo Terreiro, o palco ideal para a encenação daquele discurso do Estado Novo?
Em Lisboa, tinha que se traçar a Praça do Império para desenvolver o complementar discurso da projecção de Portugal no Mundo, e disseminar esse discurso numa séria de intervenções desde o Porto a Sagres, para ressuscitar o Infante D Henrique.
Em Vila Viçosa, tudo estava condensado, num berço pequeno e aconchegado como se quer para uma raiz. Do Paço e do Terreiro, onde se podia juntar imensopovo, podiam avistar-se sobre uma colina as ruínas de antigas fortificações.Não era o Castelo da “cidade berço da nacionalidade” e as muralhas tinham que ser reerguidas (como é próprio das muralhas que responderam à sua vocação de passar por guerras), mas nestas muralhas estava abrigada uma imagem de Santa Maria, ali colocada pelo Santo Condestável, outro expoente da HistóriaNacional e ancestral dos Bragança. Fazendo da necessidade virtude, as fendas foram fechadas, refeitas as ameias e alguns torreões, desimpedidas as muralhas dos escombros e de tudo o que pudesse impedir a vista do altaneirocastelo reapresentado no esplendor da sua origem medieval, ou imemorial, de tal modo com ele ficava confundida uma fortaleza quinhentista que (perdida num arvoredo entretanto plantado e por trás de uma Porta imponentemente (re)construída à frente das suas bocas de fogo) ficava a parecer mais antiga do que as “velhas muralhas” e do que a nova Porta de Évora, que neste cenário fazia as vezes de Torre de Menagem.

Poderia superar-se o problema com um plano de valorização que, além da recuperação das fortificações, passasse por um Museu do Azulejo, por exemplo na torre albarrã, onde seriam expostos, entre outros, os azulejos da Capela de Nª Sr.ª dos Remédios dali retirados em 1936, e construindo com um ideário arquitectónico dos tempos de hoje, uma praça/foro/centrocultural, que rompa a sequência de edifícios salazarenhos, num espaço que permanece livre de edificação depois de ter sido retalhado aquando da abertura da avenida,e no lugar de uma antiga sede do município de que o Pelourinho guarda a memória. Seria indispensável que esse centro tivesse um acervo documental que incluísse os documentos relativos às alterações naquele espaço, usando um extenso acervo fotográfico, a exibir com recurso a todas as tecnologias de exposição.

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Mais subtis são as diferenças no entendimento da história que podem explicar a desvalorização da fortaleza quinhentista (Não nos vamos dedicar aqui à sua análise, mas têm a ver com o modo como são encarados na História da Europa as transformações que levaram do renascimento à Reforma e à Contrareforma; sendo que este confronto entre o espírito do renascimento e o espírito da contrareforma pode ser relacionado com o modo como a côrte ducal lidou com trágicos acontecimentos na vida e sucessão de D. Jaime, e que levaram a um enorme peso da contrareforma e dos jesuítas nesta côrte.). Daquela desvalorização da fortaleza resultou que a proeminência da figura do Duque D. Jaime em Vila Viçosa tivesse sido substituída pela figura relativamente menos importante para a especificidade do carácter desta urbe como vila ducal, que foi o Duque D. João II, da casa de Bragança, tornado IV na sequência dos reis de Portugal (ainda que em resultado disso tivesse vindo a influenciar fortemente o futuro da vila, tanto positiva quanto negativamente). Que estátua ou monumento evoca D. Jaime em Vila Viçosa. A sua proeminência só é (re)conhecida por estudiosos e alguns curiosos mais esclarecidos, ou pelos poucos visitantes do Palácio e da Fortaleza mais atentos às palavras dos guias. Que levantamento etnográfico se fez na Vila da memória social ligada a D. Jaime e aos monumentos. Ora, este conjunto de questões é essencial para decidir do carácter renascentista com que esta vila é apresentada e proposta nesta candidatura como Vila Ducal Renascentista. Que o regime de Salazar, ao fazer as celebrações dos Centenários e ao
fazer uma campanha de restauro no “castelo” tenha sacrificado a sua componente renascentista e a figura de D. Jaime, seria uma questão a estudar. Que uma candidatura de Vila Viçosa a Património Mundial como Vila Ducal Renascentista não tenha deslindado esta meada, é inaceitável, e é, no mínimo, uma falta que tem que ser suprida, sob risco de desqualificação desta proposta.
A restauração do lugar que cabe a D. Jaime na história e no carácter da Vila passa pelo restauro e revalorização da imagem da sua Fortaleza (nomeadamente nos principais panoramas “do Castelo”), passa também pela recuperação da memória da Cerca Nova e pelo reconhecimento das marcas que deixou no desenho da urbe. Voltaremos a isso na secção A.3, mas desde já se faz notar que a delimitação do núcleo histórico que se define pelas construções até à “segunda metade do século XX” seria muito mais simples e correctamente definida em função do desenho dessa Cerca Nova. Não para decalcar o seu traçado, mas em função dela e da definição e dinâmica que impôs/proporcionou aos seus espaços livres/defendidos adjacentes, alargar a eles a delimitação do núcleo urbano renascentista.
