“Era uma vez...” num Cenário de Pedra e Cal
Numa secção 2.8, intitulada Património Natural, a Proposta de Inclusão de Vila :Viçosa no Património Mundial fica-se (1) por uma referência à “formação geológica conhecida como anticlinal de Estremoz, que em Vila Viçosa termina”, e (2) por uma qualificação do solo e do “coberto vegetal” que oscila entre “paisagem [...] dominada pelos afloramentos de xisto e pelas estevas que monopolizam o coberto vegetal.” e “a fertilidade dos solos, que aliás originou o topónimo de Vila Viçosa”, a que se acrescenta:
"Ricos vales com solos barrentos e argilosos predominam em todo território, reforçados pela densa rede hidrográfica."
Sobre a água, esquecido o aquífero, e sem qualquer outra consideração acerca da “densa rede hidrográfica”, diz-se ainda, parecendo que se fala dos vales no Douro:
"Como os declives são acentuados e os subsolos xistosos predominam, os solos não se encharcam de água, que escoa diretamente para os cursos de água que, por isso, aumentam significativamente o
seu caudal." (p. 132)
E ainda, transitando para o tema “Atividades económicas”, que porém é anterior na ordem da apresentação nesta Proposta de Inclusão:
"A fixação humana aproveitou as vantagens desta condição geográfica, geradora de duas riquezas:
- O mármore, que originou uma importante indústria extrativa, com reflexos na paisagem rural (com
pedreiras ativas e inativas) e urbana (com uma intensiva utilização do mármore como material construtivo);
- A fertilidade dos solos, que aliás originou o topónimo de Vila Viçosa. Ricos vales com solos barrentos e argilosos predominam em todo território, reforçados pela densa rede hidrográfica."
É nessa secção anterior que se encontra uma curta referência à relação entre o anticlinal e o mármore como recurso. (Escassez de referências que um texto de carácter geológico anexo a este dossier de candidatura mal compensa).
Seria de esperar encontrar finalmente nessa secção “2.7. Atividades económicas” a análise da problemática do mármore. Mas, no único parágrafo dedicado ao assunto nessa escassa página, o que
está escrito reduz-se no essencial a isto:
"Vila Viçosa detém uma área total de exploração de mármores de cerca de 1000 ha, na qual existem mais de 100 pedreiras licenciadas. Esta atividade, basilar na economia concelhia, é responsável pelo
emprego de cerca de 1500 trabalhadores em empresas de extração e/ou transformação, tendo igualmente efeitos indutores sobre outros sectores, identificando-se a presença de outras atividades com ela relacionadas, nomeadamente, a fabricação ou reparação de máquinas e ferramentas."
É feita também uma curta referência ao turismo, reconhecendo que o Palácio Ducal é a principal atracção e sugerindo a criação de “unidades hoteleiras de gama média”. E num terceiro parágrafo,
igualmente curto, diz-se que: “as atividades agrícolas, silvícolas e pecuárias têm vindo a perder importância” mas que “a agropecuária é ainda uma importante fonte de receitas para o concelho ”,
mantendo, as atividades nestes sectores, “relevância ao nível do emprego sazonal, maioritariamente de mulheres, e enquanto fonte de rendimento complementar de muitas famílias”. E, sobre a “paisagem”, de forma surpreendentemente exígua numa candidatura que a tem como uma das suas componentes e eixo de retórica valorizadora:
"Este setor desempenha ainda uma função insubstituível enquanto fator de sustentabilidade paisagística."


Esta candidatura fala aos calipolenses de um tempo em que alguns remediadamente viviam à sombra da glória da alta nobreza instalada localmente e outros sobreviviam talvez com menos dificuldades do que a generalidade da pobre gente por esse Alentejo fora. Deixado para trás esse tempo de glória, de deleite e de algum aconchego, agora reduzido a uma memória que quando muito lhes dá uma identidade bairrista diferenciadora -- uma memória e uma identidade que esta candidatura, à semelhança do regime de Salazar, explora e repropõe como uma história de embalar do tipo “Era uma vez ...” – foi a exploração do mármore que permitiu à nova classe dominante enriquecer e ganhar prestígio, à nova classe média viver desafogadamente, e aos desprovidos de qualquer capital encontrar um trabalho que lhes permitia sobreviver, um trabalho duro e arriscado, mas que permitia sonhar com dias melhores.

Estou a exagerar. Há profissionais que têm uma noção tecnicocientífica destes problemas e de como começar a resolvê-los. Mas o registo de linguagem narrativo e coloquial de que acabei de (ab)usar foi o que me pareceu mais adequado para tornar claro o contexto cultural em que a problemática do mármore é ignorada ou esquecida e como é difícil de articular com o imaginário da história, da edificação e da intervenção ducal na paisagem, e de como isso se integrou com a cultura local de modo socialmente mais alargado. Como esse contexto cultural dirige e condiciona o modo em que as marcas físicas, o património sedimentado na história, podem ser valorizados. Como é que podem ser valorizados numa apresentação, enquanto imagem atractiva, mas também numa elaboração discursiva que aprofunda essa imagem e se pode inserir numa candidatura a património classificado. E, mais difícil ainda, como podem ser valorizados fisicamente no contexto da utilização e salvaguarda que localmente se faz do património. Encontrando-nos aqui com a necessidade e os processos de ordenamento.
Em contraste com a prometedora mas prosaica e poeirenta exploração do mármore, que ia espalhando cicatrizes pelos amenos azinhais e olivais, a memória da vila ducal surgia como uma história do tipo “Era uma vez um rei que tinha uma filha muito bela... (mas que um dia comeu uma maçã...)”. Um dia ... uns senhores de Lisboa viram em Vila Viçosa um cenário de pedra e cal onde contar ao país inteiro essa história de embalar.Calipolenses e visitantes encarnaram de bom grado a narrativa enquanto desciam pela nova Avenida dos Duques ladeada de laranjeiras, (as crianças chupando um pirata comprado na Pastelaria Azul – para que não se pense que o aqui narrador não participou deste imaginário), ou sentados numa esplanada da Praça com a família e amigos a beber um Canada Dry enquanto desfrutavam da vista para a nova porta do castelo medieval aberta pela Avenida Duarte Pacheco.
Terá sido ainda embalados nessa representação que os administradores autárquicos do início do novo milénio decidiram repropor aos calipolenses, ao país, e agora ao Mundo, esse cenário de
história de encantar, mas contada numa roupagem mais científica, capaz de corresponder aos requisitos de burocratas mais exigentes. Mas, se os salazaristas deram a volta ao cenário em dez anos, estes estão há vinte sem fazer a narrativa sair do papel. O mais cenográfico que fazem são uns fogos de artifício sobre a (re)construída porta medieval, agora revestida e dignificada com a patine que lhe deram oito décadas, e meio encoberta pela vegetação que esconde mais ainda a fortaleza quinhentista.
Numa vivência da paisagem, urbana e rural, alimentada por este imaginário, as colinas cobertas por moledo e as escombreiras que enquadram as saídas da vila a Sudoeste e a Noroeste, as
escavações entre vinhas e olivais, a abundância de pó branco com que se cobrem os caminhos, não podem ser vistos. Muito menos pensados como parte de uma problemática. Num período de
decadência das indústrias ligadas à exploração do mármore, sobretudo das extractivas, o turismo pode ser a salvação, se não mesmo a nova “galinha dos ovos de ouro”, depois do “ouro branco”.
Mas o turismo requer atractividade, e a cultura é um factor de atractividade. Demos-lhe cultura então: arte, história, paisagem. Também temos disso. A exploração do mármore e os seus problemas que esperem. Se alguém diz que as pedreiras podem ser um factor de atractividade, logo pensam em visitas às pedreiras que podem ir até à prática de desportos radicais … Se podem ser usadas
cenograficamente, que se organizem espectáculos, que se encha algumas de água. Que há problemas de poluição de muitas dessas águas... limpa-se, canaliza-se, tapa-se. Não se consegue, então esquece!
Reconhece-se nesta candidatura que o ordenamento teve um papel importante na construção e conservação da paisagem ducal (quer rural, quer urbana – e mesmo na articulação entre ambas, embora isso seja questionável). Mas parecem não se dar conta de até que ponto “paisagem” requer ordenamento a várias escalas (em todas as escalas) e isso sem compartimentar espaços, sem segregar aqueles espaços onde não se consegue resolver os problemas.